Conta a tradição que há mais de setenta anos dois doentes alcoólicos começaram a conversar e não beberam. No mundo todo alcoólicos continuam a conversar desde então e não beberam. O “só por hoje” já dura mais de que através do diálogo o homem pode encontrar soluções brilhantes para sua existência.
Em 1988, a Constituição Cidadã trouxe para o direito penal, carcomido por uma prática ineficaz desde os tempos da Colônia, um novo sopro, um novo conceito, o da pacificação social, criando o instrumento dos Juizados Especiais Criminais.
A Justiça penal deixa de ser apenas uma retribuição do mal praticado por um mal (violência legítima do estado que, quando é exercida de maneira errada, como, por exemplo, em prisões superlotadas, se torna ilegítima) e passa a poder contar com soluções visando o futuro, para uma determinada categoria de delitos – infrações penais com pena privativa da liberdade inferior a dois anos – a que apelida de “infrações penais de menor potencial ofensivo”.
Ora, o que é essa Justiça Especial, criada pela Constituição Federal em 1906 e disciplinada pelo legislador comum em 1995, através da Lei nº. 9.099?
É a Justiça do diálogo, onde as partes envolvidas, direta ou indiretamente no litígio, são chamadas a conversar. É a justiça coexistencial.
Nossa cultura está acostumada a terceirizar a solução dos litígios. As partes depositam na mão de terceiros a solução de seus problemas. O Estado encarregado desta terceirização, o Juiz, por sua vez, acostumou-se a dirimir conflitos. Todavia essa solução se mostra insuficiente para a sociedade moderna. Mesmo se dirimido o primeiro conflito, a litigiosidade social permanece latente e outros conflitos se instalam e cada vez mais a presença do Estado é requisitada, gerando acúmulo de processos e demora. Justiça que tarda é sempre Justiça que falha, diz o velho ditado.
Assim, cada vez mais a Justiça deve se empenhar em diluir o conflito, em verdadeiramente atacar o litígio social existente e na medida em que o real problema da vida é solucionado, o litígio processual passa a ser desimportante.
Quando as partes voltam a ser chamadas para buscarem a solução de seus conflitos, o Juizado Especial Criminal reforça a cidadania.
Assim, é o princípio basilar do Juizado Especial Criminal a reconstrução da cidadania e o prestígio à autonomia da vontade e responsabilidade individuais.
Mais uma vez, aqui os caminhos dos grupos de mútua ajuda e da Justiça se aproximam.
Obviamente o álcool, a droga mais consumida em nosso País, constitui um dos elementos presentes na violência interpessoal. Não se trata aqui de buscar desculpa no álcool para a violência, mas apenas a constatação de que sem resolver o problema do relacionamento do alcoólico com a droga não se chegará jamais à solução do litígio interpessoal em que este se envolveu.
O álcool está presente em nossa sociedade. É um problema que afeta todas as classes sociais, etnias, sexos e assim deve ser resolvido na sociedade.
A prática vem demonstrando a pouca eficiência, nesta área, de medidas de força como a prisão ou a internação compulsória. Cessada a constrição da liberdade, geralmente, o primeiro passo do liberto é em direção ao álcool.
O maior êxito vem sendo obtido nos grupos de mútua ajuda, com reconhecimento até mesmo da ciência médica. Porque, então, excluir esse valioso conhecimento da
Justiça?
Por certo não pode a Justiça determinar que alguém se torne membro de Alcoólicos Anônimos. Para se tornar membro basta à vontade de querer parar de beber, diz a tradição, e vontade é o ato unilateral do alcoólico.
Também não pode a Justiça exigir que Alcoólicos Anônimos seja fiador da abstinência de ninguém. Toda a filosofia dos grupos se baseia no “só por hoje”.
Muito menos ainda pode a Justiça demandar que a freqüência às sessões do grupo surta o efeito desejado independentemente da interação de outros fatores. Cada ser humano possui seu tempo personalíssimo. Se para alguns o “só por hoje” é atingido no primeiro dia, para outros ele leva toda a vida. O próprio programa de Alcoólicos Anônimos é composto por 12 Passos e 12 Tradições, que devem ser percorridas, uma a uma, e renovadas diariamente, o que demanda uma progressividade.
O que espera, então, a Justiça do trabalho com Alcoólicos Anônimos?
Primeiramente, longe de exigir que o encaminhado se torne membro de A.A., ela confia na habilidade dos grupos e Na seriedade do programa para que o encaminhado
se encante e, um dia, no seu tempo pessoal devido, lhe seja dado alcançar a condição de membro. Frequentador é o que se exige.
Entendemos que a partir da freqüência certamente alguma semente ficará plantada na mente do encaminhado, que germinará no tempo certo.
Em segundo lugar, a Justiça respeita a autonomia dos grupos. Não se deve impor a aceitação da presença do encaminhado e a freqüência deve ser demonstrada por
qualquer meio idôneo.
Se para o encaminhado a freqüência a A.A. deve ser encarada primeiro como um benefício, de certa forma ela contém um caráter de sanção pela infração penal praticada, ao privá-lo de seus momentos de ócio ou lazer. Não se olvida que estamos tratando de direito penal, de processo penal e a comprovação do cumprimento é uma exigência do sistema penal.
Em minha experiência pessoal, certa vez determinei que um alcoólico prestasse serviços à comunidade, no período de reuniões durante a sessão. Esse era o meio idôneo que imaginei para obter a comprovação da presença à reunião. Felizmente o representante de A.A. da cidade em que trabalhava me procurou no gabinete, demonstrando o desatino da minha decisão e a partir daí começaram a surgir novos meios de comprovação da freqüência.
Hoje, instituímos no Rio de Janeiro, um cartão de freqüência, cuja responsabilidade pela guarda é do encaminhado, no qual o responsável pela reunião deve apor um carimbo ou uma rubrica. Não se descumpre assim o princípio do anonimato, tanto de quem conduz a reunião do grupo, como do encaminhado que, voluntariamente, ao aceitar o acordo para por fim ao processo, renuncia ao seu anonimato.
Mais uma vez, o reforço da autonomia da vontade está presente, ao entregar ao encaminhado a obrigação de comprovar a freqüência.
A decisão de permitir ou não a presença em reuniões fechadas incumbe ao grupo que recebe o encaminhado. Caberá a ele, dentro de sua autonomia, avaliar a adequação ou não de admitir pessoas encaminhadas pela Justiça, se há discriminação ou não, em fim, se a presença de um encaminhado pela Justiça rompe ou não as tradições de A.A.
Certamente, o risco da presença de um encaminhado pela Justiça à reunião fechada é o mesmo da presença de um outro qualquer membro que recaia no uso do álcool.
Segundo se aprende no contato com o maravilhoso trabalho dos grupos de A.A., todos aqueles que alcançaram o desenvolvimento pessoal a ponto de se tornarem membros de A.A. ali chegaram encaminhados por alguém, pela família, pelo patrão, por amigos, por médicos ou até mesmo pelo “Poder superior”.
Pergunto, por que não aceitar a Justiça como um facilitador do contato de quem sofre da doença do alcoolismo com aqueles que podem ajudá-lo?
A pergunta permanece no ar para que, trabalhando juntos possamos respondê-la.
Rio de Janeiro, 30 de outubro de 2006.
Dr. Joaquim Domingos de Almeida Neto
Juiz de Direito do IX Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e Especial Criminal
Barra da Tijuca/Rio de Janeiro/RJ
Vivência nº 107 – Maio/Junho 2007
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