Nossa visão sobre supostos “problemas” sempre pode ser relativizada.
Conheci A.A. muitos anos atrás, mas, naquele tempo, fui apenas por curiosidade. Eu achava que usavam o termo “anônimo” porque eram pessoas excluídas da sociedade, que viviam no anonimato por vergonha do seu passado e para fugirem do estigma do alcoolismo, que andavam pela penumbra e pelos becos, vivendo na clandestinidade.
E não fiquei, pois não fui para ficar. Eu achava que não era alcoólico, pois tinha ainda emprego, casa e família. Aquela Irmandade “era para aqueles que já não tinham mais nada para perder e precisavam viver no mimetismo”.
Eu me lembro que achei estranho, pois fui até A.A. para ver alcoólicos e não vi nenhum – vi pessoas bem postas, bem vestidas, bem falantes – saí decepcionado. Onde estariam os bêbados? Fui enganado, pensei.
Fui embora e não mais voltei, não mais me lembrei daquela Irmandade e continuei minha caminhada no alcoolismo. Isso demorou muitos anos, pois minha doença progrediu devagar.
Começaram então as primeiras perdas: de início foram os empregos, um atrás do outro, logo depois os amigos, a seguir a família e, daí por diante, o equilíbrio, a temperança, a vergonha, a moral, a dignidade e, por fim, a fé. Fiquei sozinho no mundo.
Um dia fui visitar um antigo amigo que não sabia da minha atual situação, e ele me colocou na direção de uma pequena empresa que acabara de montar. Pouco tempo depois, dormi com a cabeça apoiada nos braços, em cima da mesa. Quando descobriu o meu estado, para salvar a sua firma ele me mandou embora. E alguns dias antes de eu deixar o emprego, entrou no escritório um cliente que gostava de conversar comigo. Sentou e começou a contar a sua vida: havia perdido um irmão há poucos dias, que era carcereiro da Penitenciária do Carandiru e fora assassinado. Contou-me ainda que ele próprio também tinha sido carcereiro de lá e que na época, ambos bebiam demais. Contou também o que faziam sob o efeito do álcool.
Ele falou isso tudo sem saber que era para a pessoa certa. No final do seu desabafo, perguntei-lhe como e onde tinham conseguido parar de beber. Ele me olhou meio cismado, já desconfiando de alguma coisa. Eu disse: “Tenho um problema seríssimo com o álcool, tanto que estou sendo demitido dessa empresa por esse motivo e, quando sair, não tenho para onde ir e nem mesmo onde ficar, pois já perdi tudo, só me restou a vida”.
E ele respondeu: “Sobrou demais então, pois enquanto há vida, há esperança”. Chamou-me lá para fora e apontou para uma capelinha simples dizendo: “Ali, todas as quartas feiras, às 20 horas, acontecem reuniões de um grupo de pessoas que tiveram os mesmos problemas que nós.
São os Alcoólicos Anônimos, já ouviu falar?” Eu respondi que sim, que no passado tinha ido a uma reunião, mas que não tinha entendido nada, pois estava alcoolizado. Então ele completou: “Pois foi ali que eu e meu falecido irmão paramos de beber e onde tudo começou a mudar. Vá lá, na quarta-feira, tomar um café com os companheiros, e assim que sair daqui e não tiver onde ficar, arrumo um lugarzinho para você dormir no fundo da minha firma”.
Fiquei ansioso para que chegasse logo a quarta-feira e realmente conhecer – como disse ele – aqueles companheiros, aquela Irmandade que um dia eu não tinha aceitado e nem mesmo entendido.
Chegando lá, uma porção de gente veio me encontrar na porta. Recebi muitos apertos de mão e todos me diziam que eu era a pessoa mais importante daquela noite. Eu estava confuso, há muito tempo não recebia tamanha consideração e respeito. Entrei, sentei-me e passei a observar aquele pessoal alegre e simpático, perguntando a mim mesmo: “Onde estariam os bêbados?” Uma vez mais, fiquei curioso.
Quando começou a reunião, logo no primeiro depoimento percebi que estava o tempo todo misturado com os alcoólicos, que ali mesmo, naquela platéia distinta, estavam as pessoas problemáticas do passado.
Fiquei maravilhado. Percebi que não estava sozinho naquele sofrimento, que meu caso ainda tinha solução e esperança e que bastava querer, pois eles haviam conseguido.
Então veio uma mulher, sentou-se e afirmou “Graças a Deus, sou uma alcoólica”. Pensei: “Não só alcoólica, mas louca também”. Como podia dar graças a Deus por isso? Ela então disse que tinha em sua família uma pessoa com uma doença incurável em fase terminal, e que quando chegasse em casa talvez não a encontrasse mais com vida. Ela, por outro lado, tinha uma doença também incurável, mas que podia estacionar, bastava querer – e começou a chorar.
Quando terminou a reunião, voltei para casa, ou seja, para o fundo da firma do amigo.
Chegando lá, levantei com dificuldade a porta de aço, acendi um palito de fósforo, entrei devagar, desviando-me das máquinas, pilhas de ferro, montes de sucatas e outros incômodos pelo caminho. Ao chegar ao fundo do galpão, acendi a luz, estendi uns papelões no chão, forrei-os com um lençol e me deitei, cobrindo-me com um cobertorzinho daqueles que a turma chama de “tomara que amanheça” e disse a mim mesmo: “Graças a Deus, sou apenas um alcoólico”. Deus, como O entendo, se manifesta em nós, a cada momento de tolerância.
N.L., Mogi Mirim/SP
Vivência 71 – Maio/Jun 2001