Estava eu com os meus noventa dias de ingresso, quando um companheiro me abordou sobre serviço no grupo. Falou da carência de servidores, que por isso o comitê de serviços nunca se completava, e falou também de um certo crescimento espiritual, cujo significado prático eu não consegui absorver na hora. O que enxerguei naquele momento foi uma grande oportunidade de mostrar “meus valores”.
Candidatei-me à vaga de secretário, sendo prontamente aceito, visto que, com exceção do encargo de coordenador, todos os outros estavam vagos. Na primeira reunião em que participei como secretário caprichei na letra para ser a mais bonita do livro. No outro dia, meu padrinho me falou que, em função da carência de servidores, a limpeza do grupo deveria ser feita por quem estivesse à frente dos serviços, ou seja, por mim também. Principalmente o banheiro deveria ser limpo em toda reunião. Dessa parte eu não gostei muito e pensei: “Logo eu, que sempre trabalhei em escritórios impecáveis e exercia uma função que me permitia contratar quantos faxineiros precisasse, agora estava ali, frente a frente com um esfregão, uma caixa de sabão e um vaso sanitário sujo.” Era demais para mim e me veio a idéia mais estapafúrdia que poderia me ocorrer naquele momento. “Está bem, eu faço,mas vou fazer tão bem feito que será notório. Ninguém jamais terá limpado este grupo tão bem quanto eu.”
No outro dia estava suando em bicas. Primeiro limpei o auditório, deixando-o um brinco. Em seguida encarei o banheiro. Foram umas três horas de faxina e deixei tudo impecavelmente limpo. Como tinha tempo de sobra até a reunião, tomei um ônibus e fui até em casa me vestir a caráter para retomar ao grupo e aguardar os elogios, que certamente viriam em quantidade. Eu antevia meus companheiros me abraçando e dizendo que realmente eu era o melhor servidor que o grupo já tivera.
Voltei. Ansioso, me esmerei nos retoques finais à espera dos meus admiradores. A hora parecia não passar… até que começaram a chegar. Um a um, dois a dois, enfim, foram entrando, me cumprimentando como sempre, mas nada de alguém se referir à limpeza ou fazer qualquer comentário a meu respeito. Eu estava a ponto de pedir que dessem uma olhadinha no banheiro, mas me contive. O grupo foi enchendo como acontecia normalmente aos sábados e deu-se o início da reunião, veio o intervalo, o final, e nada de elogios. Ninguém se dignou a tecer um pequeno comentário que fosse com relação a tudo que eu tinha feito. Uma tarde inteira suando a troco de nada, uns ingratos. É impossível que ninguém tenha percebido a metamorfose que aconteceu aqui.
A decepção foi total. Me torturei o tempo inteiro ansiando por elogios que não vieram. Na despedida, apertei mecanicamente a mão de alguns companheiros e, cabisbaixo, segui rumo à minha casa, completamente arrasado. Pensava se não seria melhor esquecer tudo, parar com esse negócio de A.A. e tentar me recuperar por conta própria, muito embora de antemão soubesse que seria impossível.
Em casa, minha esposa perguntou como tinha sido a reunião, aliás, como sempre fazia, torcendo para que dessa vez não fosse mais uma de minhas “deixadas”, pois já tínhamos perdido a conta das vezes que deixei de beber, voltando cada vez pior em no máximo 15 dias. Estava ela alimentando já uma pontinha de esperança e eu, para não decepcioná-la, disse que foi ótima.
Deitei, mas o sono não veio. Lá no meu íntimo alguma coisa começou a martelar. Afinal, o que eu queria, ser elogiado por um breve instante ou buscar uma recuperação para toda a vida? O que seriam algumas tapinhas nas costas diante de uma sobriedade duradoura que me devolveria a vontade de viver e a dignidade, conforme diziam meus companheiros em seus depoimentos? Ademais, na vida que levava ultimamente estava longe de receber algo parecido com um elogio. O que meus ouvidos captavam eram ironias, sarcasmos, piadas endereçadas, humilhação, coisas vindas dos mais diferentes olhares reprovadores.
Tudo isso sem contar duas hepatites alcoólicas, manchas roxas pelo corpo, audição de vozes com as mais variadas conotações pornográficas e ao meu redor não via ninguém. Agora estava eu acata de elogios que iriam satisfazer o meu ego, em detrimento da coisa mais sublime deste mundo, que é o direito à vida. Adormeci.
No outro dia eu já me livrara daquela briga interna. Nas reuniões seguintes, fui trocando a vontade de ser elogiado pela vontade do aprendizado. Adquiri o livro Os Doze Passos e as Doze Tradições e passei a ler com freqüência boa, e com isso minha mente foi se abrindo gradativamente para eu perceber como estava longe da realidade. Hoje continuo com uma vontade enorme de aprender, sem no entanto querer me tornar professor. A lição que recebi daqueles companheiros, sem que nenhum deles soubesse, foi um dos maiores ensinamentos que já tive em toda a minha vida.
Aquele dia foi o meu pior dia sóbrio, mas talvez até hoje, o dia de melhor aprendizado para toda a vida. Devo acrescentar que, de vez em quando, seguro aquele esfregão e o encho de elogios.
Fico por aqui desejando muitas e serenas vinte e quatro horas de sobriedade para todos os AAs do Brasil e do mundo.
Moacir, Natal /RN
Vivência nº 57 – Janeiro/Fevereiro 1999