Eis uma das frases mais ouvidas nas reuniões de A.A. em quase todos os lugares do mundo. Mas, de onde vem? Por que a dizemos? E, devemos continuar a fazê-lo?
Parece claro que a identificação é um conceito importante em A.A. Na realidade, podemos considerá-la a chave da filosofia de A.A. – um alcoólico ajudando a outro alcoólico.
Entretanto, por se tratar de uma Irmandade com grande variedade de sugestões, mas sem regras oficiais, é necessário que uma pessoa diga, como muitos dizem ao apresentar-se em uma reunião, que é alcoólica?
Nos primeiros anos de formação de A.A., Bill W., um de seus cofundadores, se debatia com a dúvida referente a esta questão e escrevia com frequência a respeito do dilema que enfrentavam os recém-chegados enquanto lidavam com a doença, talvez pela primeira vez e no contexto relativamente público de uma reunião de A.A.
Bill argumentava de forma incisiva que devia ser oferecida ao recém-chegado a maior liberdade possível para decidir como e quando se identificaria como alcoólico. Em um artigo escrito para a Grapevine com o título “Quem é membro de Alcoólicos Anônimos? ” – Artigo este que mais tarde iria formar a base da Terceira Tradição, Bill comentou: “Esta é a razão pela qual julgamos cada vez menos o recém-chegado. Se para ele o álcool é um problema incontrolável, e ele quer fazer algo a respeito, não lhe requeremos mais…. Atualmente, na maioria dos Grupos, nem sequer é preciso dizer que é alcoólico. Qualquer um pode-se juntar a A.A., apenas suspeitando que seja alcoólico ou que já perceba os sintomas mortais da nossa doença”.
Bill esclareceu ainda mais sua opinião nas palavras que aparecem no folheto “As Doze Tradições ilustradas” (Junaab, código 106, R$ 6,00), na seção que trata da Terceira Tradição: “Quem decide se o recém-chegado é ou não qualificado? Se quer mesmo parar de beber? Ninguém, obviamente, exceto o próprio recém-chegado; todos os demais simplesmente têm que aceitar sua palavra. Na realidade, ele não tem sequer que afirmar isso em voz alta. E isso foi uma sorte para muitos de nós, que chegamos em A.A. apenas com um vago desejo de ficarmos sóbrios. Estamos vivos porque o caminho de A.A. se manteve aberto para nós”.
Ao se apresentar para falar, Bill W., muito raramente – para não dizer nunca, se identificava como alcoólico, e não há nada na literatura de A.A. aprovada pela Conferência (EUA/Canadá), que indique como os membros devem apresentar-se nas reuniões de A.A., nem sequer que seja necessário fazê-lo. Entretanto, nos dias de hoje, pode haver momentos muito tensos nas reuniões quando um membro não se apresenta como “alcoólico/a” ou, mais tensos ainda, quando se complementa essa identificação com palavras tais como “sou um alcoólico cruzado”, “sou adicto” ou “alcoólico e dependente de outras drogas”.
Muitos membros acreditam que essas complementações são preocupantes porque podem representar uma ameaça à nossa unidade e unicidade de propósito. Em um artigo publicado em janeiro de 1990 na revista Grapevine, Rosemary P., antiga delegada de Pittsford, Nova York, escreveu: “Quando em um evento de A.A. digo que sou ‘alcoólica e dependente de outras drogas’ ou ‘dependente cruzada’, estou-lhes dizendo que sou um caso especial de bêbada, que meu alcoolismo é diferente do seu. Estou dando uma dimensão extra à minha doença – dimensão esta que, dada a unicidade de propósito, não é apropriado mencionar em uma reunião de A.A. Quebrei nosso vínculo pela metade e, mais importante ainda, diluí meu próprio propósito para estar ali”.
Mas, de onde veio este costume de identificar-se como alcoólico/a e como acabou por se gravar tão indelevelmente na paisagem de A.A. do século XXI?
Da mesma maneira que em outros assuntos relacionados com A.A., ninguém sabe com segurança qual foi a origem deste costume e já com muito poucos pioneiros ainda entre nós, poucos são aqueles que podem oferecer alguma pista plausível, e além destas pistas, há apenas especulações.
Entretanto, de acordo com uma amiga de A.A. desde seus primeiros tempos, Henrietta Seiberling, a expressão remonta às reuniões do Grupo de Oxford que tiveram seu apogeu no começo da década de 1930. A Sra. Seiberling, não alcoólica, frequentava o Grupo de Oxford em Akron, em busca de ajuda espiritual e foi ela que arranjou o primeiro encontro entre Bill W., e o Dr. Bob, que naquele momento estava tentando se esforçar para lidar com seu problema com a bebida também frequentando o mesmo grupo que Henrietta. Nessas pequenas reuniões, todos os participantes se conheciam e não tinham necessidade de se identificar. Porém, nas grandes reuniões “públicas”, onde os participantes “testemunhavam”- de maneira muito parecida com a que os membros de A.A. fazem atualmente em suas reuniões regulares, chegou a ser preciso se identificar. É possível que em algum momento alguém tenha dito “eu sou alcoólico”, porém, a Sra. Seiberling não estava muito segura de que tenha sido assim. Nem se lembrou de ter ouvido a frase nas primeiras reuniões de A.A. celebradas em Akron, ainda antes da publicação do Livro Grande (nosso Livro Azul).
Um membro de Nova York da época pioneira se lembra de ter ouvido a frase em algum momento depois da Segunda Guerra Mundial, em 1945 ou 1946; mas, sabe-se com certeza que em 1947 foi produzido um documentário para A.A., pela RKO Pathe, com o título “I am an alcoholic” ou, “Eu sou um alcoólico”, o que dá credibilidade à ideia de já naquele tempo, nos círculos de recuperação, a frase era reconhecível.
Desde então a frase foi-se arraigando até se converter em um protocolo, um elemento quase obrigatório do léxico da recuperação e, com suas diversas alternativas e permutações auto reveladoras, se transformou numa forma um tanto quanto controvertida de se apresentar nas reuniões.
Atualmente, muitos acreditam que a solução do conflito que alguns sentem ao ouvir seus companheiros se apresentarem como “adictos”, ou com outros termos além do simples “alcoólico”, irá ser encontrada dentro da própria Irmandade.
Rosemary P. disse: “Cabe a cada um de nós mantermos intacto nosso programa, repassá-lo ao recém-chegado tal como o passaram para nós. E, também muito importante, fazer isso com explicações pacientes, tolerância diante das diferenças – e mais explicações pacientes. Acredito que, através do apadrinhamento comprometido, Grupos base sólidos e serviço ativo, os novos membros irão aprender a ser parte integrante de A.A. e não um fragmento”.
A outros lhes irá parecer mais importante a sinceridade e a reflexão a respeito do que “verdadeiramente são”, ao se apresentar numa reunião; outros ainda, acreditam na importância de manter os problemas separados e tratá-los nos programas e Irmandades criadas para suas respectivas finalidades: Narcóticos Anônimos para adictos a outras substâncias além do álcool, Comedores Compulsivos Anônimos para os adictos incontroláveis à comida, etc. Há ainda aqueles que não lhes parece muito importante a forma utilizada nas apresentações, seja como “adictos” ou como “alcoólicos” e propõem que os participantes se identifiquem simplesmente como “membro de A.A.”, já que, por definição, todos os membros de A.A. são “alcoólicos”.
Chegar ao equilíbrio entre estas posições é um constante exercício de humildade, confiança e aceitação no seio da Irmandade, enquanto os membros buscam ser inclusivos e ao mesmo tempo reconhecer os vínculos singulares do alcoolismo que nos mantém conectados a todos.
Como está expresso no Livro Azul, capítulo “Entrando em Ação”, página 113/1/2: “Entramos no mundo do Espírito. Nossa próxima tarefa é cultivar a compreensão e a eficiência. Não é algo que se consiga da noite para o dia. Deve continuar por toda a nossa vida. Continuaremos a tomar cuidado com o egoísmo, a desonestidade, o ressentimento e o medo. Quando aparecem, pedimos imediatamente a Deus para removê-los. Sem perda de tempo, falamos a respeito deles com alguém e, se magoamos outra pessoa, fazemos logo uma reparação. Então, com firmeza, voltamos nossos pensamentos para alguém a quem possamos ajudar. O amor e a tolerância para com os outros é o nosso código”.