“Ela se sentiu como se estivesse entrando no túnel do tempo, indo para o futuro, um futuro brilhante, claro, iluminado pelo Poder Superior.”
Quando fui procurar a Irmandade, sem saber da existência do “tal de fundo de poço”, eu já havia atingido o meu limite, senão eu não teria ido procurar ajuda.
Cada um que chega, mesmo que não admita que está bebendo exageradamente, é porque já atingiu o máximo; sua resistência física e emocional já estão abaladas.
Não importa o tempo que eu passei bebendo. O que importa é a maneira como eu bebia, a quantidade exagerada de álcool que eu ingeria.
Por alguns anos fui forte para beber. Orgulhava-me disso. Pouca bebida não me derrubava, precisava beber “todas” para fazer a cabeça.
Eu gostava da tonturinha, não do sabor da bebida. Não gostava do sabor, tanto é que desenvolvi uma maneira muito prática: virava o copo sem respirar, de uma vez só.
Com o passar do tempo, um só copo já me derrubava, sentia náuseas, não conseguia dar passos firmes ou rápidos, meu fígado parecia estar solto.
Lembro-me que uns dias antes de conhecer a Irmandade, meu marido chegou de viagem e me levou para uma outra praia.
Queria que eu saísse um pouco de casa. Fui contrariada e ali fiquei eu, sentada próximo a um quiosque, vendo uma criança brincar na areia.
Meu desespero foi tão grande de ver aquela criança brincando tão feliz que eu queria pular no pescoço dela. Insanidade total, meus amigos.
E ainda assim achava que não bebia exageradamente. Quer dizer: acho que eu sabia, mas não queria admitir.
Mentia para mim mesma, tentava me enganar, enganar meus filhos. Claro que eles, que não eram bobos, percebiam essa tal de negação, a minha negação, as mesmas histórias que inventava para convencer a mim mesma que não bebia exageradamente.
Mais tarde, já na Irmandade, vim a saber que as pessoas com grande resistência ao beber é que são as fortes candidatas a desenvolver a doença do alcoolismo. E eu sou uma delas.
Conheço uma pessoa a quem só uma taça de vinho serve para embriagá-la. Essa não vai desenvolver a doença nunca porque ela não consegue beber mais que isso.
Eu era o contrário, uma garrafa de vinho não bastava, eu precisava de muita bebida para me embriagar e tinha o maior orgulho disso.
Meu filho mais velho também é um forte candidato a desenvolver a doença. Já o caçula e a menina, não aguentam beber. Eles têm verdadeiro pavor de bebida alcoólica. Se experimentaram? Claro que sim, mas nós, os pais, já estávamos em recuperação e pudemos auxiliá-los.
Sofri muito com a minha doença, mas não fui eu só quem sofreu.
Meus filhos sofreram também. Hoje posso afirmar, por ter vivido em minha pele, que o alcoolismo não destrói somente a pessoa que bebe, ele atinge os familiares, todos os que estão ao redor.
Por que demorei tanto a procurar ajuda? Porque, como na maioria dos casos, os familiares não somente escondem, como também super-protegem o alcoólico, pela vergonha que sentem da situação, principalmente em se tratando de uma mulher. Não vaza nada: tudo fica escondidinho.
É tão simples, tão normal ver um homem bêbado caído na sarjeta, dormindo em bancos de praça, dormindo na areia. Nesses casos quase ninguém aponta o dedo. Com a mulher é diferente. Olham com asco e falam: “- olha só, aquela não tem vergonha na cara”. Eu era uma bebedora caseira, como brincam comigo no grupo. Nunca bebi em bares, nem na sociedade. Só bebia em casa.
Eu bebia “todas” antes de sair para as baladas e quando e quando voltava para casa “completava o tanque”.
Minha vida mudou completamente, não tenho nem um pouquinho de saudade daquele tempo.
Hoje que mais é viver com alegria, poder brincar com meus amigos, com meus filhos, dar gargalhadas, que hoje são verdadeiras, espontâneas; não preciso mais fingir alegria, porque ela está dentro de mim. Faz parte da minha personalidade.
Quando criança e adolescente eu era uma garota alegre, feliz. Com o desenvolvimento da doença, esqueci aquela criança. Ela ficou lá adormecida porque minha insanidade não me deixava acordá-la.
Mas chegou o dia que Deus, em sua infinita sabedoria, colocou seu dedo sobre meu nariz e falou: agora chega, menina; você já fez tudo o que queria fazer; agora é minha vez. Você já bebeu a sua parte, já magoou, já prejudicou, já se agrediu em demasia, já fez um monte de besteira. Vamos dar uma virada de 360 graus.
Não foi meia virada não. Foi uma virada total. Senti como se eu estivesse entrando no túnel do tempo, indo para o futuro, um futuro brilhante, claro, iluminado pelo Poder Superior.
Foi através Dele e de uma força maior que meus passos me conduziram a uma sala de A.A.
Dificuldades? Quem não as tem? Nem saberia viver sem elas; estaria mentindo se dissesse que minha vida é um mar de rosas, que todas as noites mergulho em uma banheira cheia de pétalas de flores.
Não é nada disso. Mas aprendi a tirar o melhor proveito do meu dia, aproveitar cada minuto como se fosse o último,
Isso aprendi com meus companheiros de A.A., que meu Poder Superior colocou em meu caminho.
Obrigada, companheiros, por vocês terem criado raízes em minha vida.
M. de Fátima
Vivência – Maio/Junho 2004