Temos certa dificuldade em colocar no papel os nossos pensamentos e idéias, ou porque não nos sentimos em condições, ou porque nos preocupamos com as críticas que poderemos receber. Mas, quando resolvemos escrever algo a respeito do programa de recuperação a nós sugerido, verificamos que também foi bastante difícil para os nossos co-fundadores sustentarem suas idéias quando ainda estávamos em formação.
Bill W., quando começou a escrever como funcionava o programa de recuperação, através do livro “Os Doze Passos”, procurou base e orientação nos preceitos dos Grupos Oxford, na medicina, na religião e, principalmente, em suas próprias experiências e nas de outros companheiros. Foi muito difícil, para ele, aceitar a ideia de retirar do esboço do livro a palavra “Deus”. Para nossa felicidade, após muito relutar, cedeu às criticas e a situação foi contornada utilizando-se a expressão ” Poder Superior na forma que O concebemos”. Bill nos deixou, com isso, uma grande lição nos dizendo, indiretamente, que temos que ser pacientes e prudentes com as críticas recebidas pois, afinal de contas, não somos perfeitos. Foi pensando nisso que resolvi ser meu amigo.
Para ser meu amigo necessito antes de mais nada, me aceitar como doente alcoólico, entender que minha doença não tem cura, saber que o álcool, realmente, é muito mais forte do que eu. Não adianta continuar lutando contra ele, pois sempre irá me derrotar. Só posso ser meu amigo se compreender que perdi o domínio total sobre a minha própria vida, que atingi meu fundo de poço e, para sair dele, basta dar o “primeiro passo” em direção á recuperação e libertação, passando a gostar de mim, a viver feliz sem o álcool e a ser meu amigo.
Tenho de acreditar na existência de uma força superior a mim, alguma coisa que possa substituir ou preencher o vazio deixado pelo meu alcoolismo. Tenho que acreditar nessa força milagrosa para poder, quem sabe, recuperar minha sanidade mental e espiritual, tenha ou não uma religião definida. Se conseguir um mínimo de fé, certamente conseguirei ser meu amigo, pedirei a essa força superior que “seja feita a Sua vontade” e não as coisas que eu desejo.
Para ser meu amigo, tenho de entrar em ação, usar a chave da boa vontade para abrir a porta da minha recuperação, deixando que entre essa força milagrosa e me dê a oportunidade de entregar a minha vida aos Seus cuidados. Tenho de aceitar a minha dependência a uma força superior que me levará cada vez mais para minha independência dentro do programa de recuperação, e não ao fanatismo.
Para ser meu amigo, antes tenho de tentar ser amigo da pessoa que vejo no espelho do meu quarto quando vou pentear os cabelos. Preciso aceitá-lo como ele realmente é e não como os outros querem que ele seja. Só posso ser meu verdadeiro amigo tentando fazer o meu próprio inventário, moral e pessoal, e não o inventário de outros companheiros de doença. Se eu conseguir entender a real necessidade desse inventário pessoal diário, vou modificar, lentamente, a minha maneira doentia de pensar e agir no meu dia-a-dia, vou viver o meu programa de recuperação, mantendo minha doença estacionada.
Poderei continuar sendo meu amigo, me dando conta da necessidade que tenho de admitir perante outro ser humano e a essa força superior, como eu entendo, a natureza exata das minhas falhas. Procuro escolher a pessoa certa para fazer o meu desabafo pessoal, pois a experiência me mostrou que eu não posso viver sozinho com os meus problemas. Preciso falar com alguém a esse respeito, alguém de minha confiança que saberá me ouvir, me entender e me aceitar como eu realmente sou.
Para ser meu amigo preciso estar consciente de que a força superior na qual acredito e tenho fé saberá muito bem a maneira como estou me prontificando a deixar que Ela remova todos os meus defeitos de caráter, embora eu saiba que alguns defeitos dificilmente consiga remover de imediato, talvez leve algum tempo e talvez nem consiga. Devo ter consciência de que não vou chegar à perfeição; somente o Primeiro Passo, onde nós admítimos inteiramente a nossa impotência perante o álcool, pode ser praticado com absoluta perfeição.
Para ser meu amigo tenho que tentar ser humilde e não orgulhoso, e como tem sido difícil para mim, me policio em todos os momentos da minha vida. O orgulho é, na realidade, viver a mentira: bebo quando quero, paro quando quero, bebo com meu dinheiro, não falta nada no meu lar, sou dono do meu nariz, posso me virar sozinho sem a ajuda dos outros. A humildade é viver a verdade: sou impotente perante o álcool, não consigo parar sozinho, preciso de ajuda, estou derrotado, meu lar desmoronou, aceito um Poder Superior a mim, sou meu amigo e gosto de mim, sou feliz fazendo o programa de A.A.
Sou meu amigo fazendo uma relação, não ordenada nem apressadamente, das pessoas que prejudiquei com meu alcoolismo. Me dispondo a reparar os danos causados a elas, tendo cuidado, e muito cuidado, para não causar danos maiores com tais reparações. Elas poderão não entender o meu objetivo , tenho de agir com cautela, coragem e muita prudência.
Para ser meu verdadeiro amigo tenho de, através da prece e da meditação, procurar o meu contato com essa força superior, pedindo apenas o conhecimento de Sua vontade em relação a mim, pedindo forças para que possa realizar essa vontade. Agindo dessa maneira, aceitarei a Oração da Serenidade e, quem sabe, a Oração do Pai-Nosso, que foi atribuída, há algumas centenas de anos, a um homem considerado santo.
Serei muito mais meu amigo se procurar, à minha maneira, experimentar um despertar espiritual através do programa que me foi sugerido e aceito, tentando transmitir a mensagem para outras pessoas com o mesmo problema, dando a elas a mesma oportunidade de conhecer essa maravilhosa filosofia de vida. Ter a alegria e a felicidade de continuar vivendo e deixando que os outros vivam em paz.
Tenho plena certeza que, não existe coisa melhor no mundo do que estar sóbrio, estar feliz, poder amar e ser amado, respeitar e ser respeitado, ser aceito como somos e aceitar os outros como eles são, ser amigo de nós mesmos e dos outros.
Por todas essa justificativa é que eu quero cada vez mais ser meu amigo .
(Cunha, Porto Alegre/RS)
(VIVÊNCIA – Janeiro/Fevereiro 98)