Após anos de abstinência, um companheiro descobriu que, para entrar em recuperação e deixar de sofrer, bastava ser honesto, consigo e com os outros.
Outro dia, ao mexer nuns cadernos velhos, encontrei essas anotações que fiz quando estava há dez anos sem beber: “ansiedade na sexta; depressão forte no domingo; pequena diminuição da paralisia geral; coceira migrou do pé para a região anal; dores abdominais; derrame no olho direito, com formação de hematoma; herpes não recuou, mesmo com pomada; sangramento no nariz; insônia e fome noturna de doces”. Era uma espécie de diário de saúde, feito a pedido de um médico psiquiatra.
Alguns companheiros dizem que, quando pararam de beber, suas vidas ficaram ruins. Enfrentar a realidade e seus problemas – afirmam eles – não foi nada prazeroso; as coisas melhoraram, mas depois de algum tempo. Comigo aconteceu o contrário. Quando parei de beber, minha vida ficou muito bem. Voltei a estudar, fui promovido no emprego, subi alguns degraus na escada social. Achei que, graças à abstinência e ao conhecimento do programa de A.A., eu tinha alcançado a felicidade que, até então, ficara fora do meu alcance. Minha nova vida e novos desafios profissionais passaram a ocupar todo meu tempo, assim, aos poucos afastei-me do grupo.
Dez anos depois, eu estava mal. Muito mal. Meus problemas não eram apenas de saúde. Também no emprego, depois de uma arrancada nos primeiros anos de abstinência, minha carreira estava degringolando. Para tentar reerguê-la, decidi mudar de área dentro da própria empresa, mas sofri boicote dos novos colegas e só não fui demitido porque minha antiga área aceitou-me de volta. Voltei humilhado, numa posição inferior à que tinha antes.
Em casa as coisas estavam igualmente ruins. Minha esposa alternava crises depressivas e fases de euforia maníaca. Vivíamos brigando, ora porque ela não conseguia sair de casa, ora porque não conseguia sair do shopping. Meu filho estava entrando na adolescência e eu o assediava com exigências para ser um homem bem sucedido. Certa vez ele disse que tinha medo de mim. Insinuou que eu não era o melhor exemplo de alguém bem sucedido.
O pior é que eu não conseguia descobrir a raiz de todos esses problemas. Apenas “sabia” que a causa não estava em mim, mas nos outros. Eu era um cara bacana, sempre bem-intencionado, que procurava agradar a todos e não fazia mal a ninguém. Acreditava piamente que a leitura da literatura de A.A. e os anos que passei num grupo tinham me transformado num sujeito melhor.
Anos depois, numa viagem com minha esposa, tive a convicção de que poderia tomar uma taça de vinho sem voltar a sentir compulsão pelo álcool. De fato, na noite da taça não senti vontade de beber. Nem no dia depois da taça. Isso me deu confiança e na noite seguinte tomei umas três taças. Na terceira noite comemorei minha “vitória” sobre o álcool bebendo uma garrafa inteira. Não parei mais durante seis anos. Nesse período perdi dinheiro, alguns amigos e meu emprego de 30 anos.
Depois de ser demitido, voltei a um grupo de A.A. Como da primeira vez em que fiquei abstêmio, eu queria apenas parar de beber. Comecei a prestar serviço, pois sabia que isso fortalecia a abstinência. Depois de algum tempo, tive um sério desentendimento com um companheiro, e na semana seguinte, um problema familiar mais sério ainda. Pela primeira vez na vida fiquei abalado com meu jeito de agir. Então, não sei de onde, surgiu-me um desejo de parar de sofrer – e também de fazer os outros sofrerem. Não, não me pus a praticar o programa de uma só vez. Decidi apenas tentar ser verdadeiramente honesto. Comigo mesmo e com os outros.
Não foi fácil, no começo. Mas, com a prática fui criando coragem de assumir, perante os outros, meus erros, minha ignorância, minhas manipulações, mentiras, vaidades e meus interesses mais mesquinhos. Descobri que mostrar meu lado feio e ruim para os outros não é vergonhoso. É libertador. E às vezes engraçado, porque meu lado feio, ruim – quando sai da escuridão – raramente é amedrontador. Geralmente é risível.
Quando percebi, estava sentindo menos culpa, menos ressentimento, raiva, vergonha. Acima de tudo, sentia menos medo. Mais disposição para viver e amar. Na medida em que avançava na honestidade, fui descobrindo que a causa dos meus problemas não estava nos outros. Estava em mim, na minha dependência doentia da aprovação das pessoas e nas exigências também doentias que fazia a elas. Dependência de agradar e exigência de ser agradado, esta era – e ainda é – a raiz comum a todos os meus problemas e inquietações cotidianos.
Voltei a ler a literatura de A.A., não mais para apenas conhecê-la ou entendê-la, mas para tentar praticá-la honestamente. Também consegui fazer, da forma mais honesta possível, os Passos da reforma íntima, como o Quarto, Quinto e Sexto. Descobri danos horríveis que causei a pessoas, principalmente mulheres. Ainda venho tentando repará-los ou, quando isso é impossível, procuro, ao menos, perdoar-me.
Recentemente, li na Vivência o texto Sobriedade emocional: a próxima fronteira e, pela primeira vez, vislumbrei um pedacinho do que Bill mostrou-nos quando – depois de vinte anos sem beber – conseguiu parar de sofrer e escreveu: “atualmente, meu cérebro não fica mais acelerando compulsivamente para euforia, grandiosidade ou depressão. Ganhei um lugar tranquilo sob o brilho do sol”.
P.S.: Meu filho não tem mais medo de mim. Mas acha que ainda preciso melhorar para ser exemplo de pessoa bem sucedida. Concordo com ele.
Anônimo. Edição: 175 – página: 10