A tarde era sombria.
O frio e o vento caracterizavam Rio Grande no inverno.
De avental branco, óculos no rosto, livro de anotações embaixo do braço, documentos policiais e caneta na mão, por mais uma das inúmeras vezes, entrei no necrotério do Posto Médico-legal onde exerço a função de perito médico-legista.
O trabalho seria igual a tantos os outros: buscar através de necropsia a causa da morte.
Diferentes estavam os estados de meu espírito, minha alma e meus sentimentos. Nem sempre são os mesmo. Variam por fatores que desconheço.
É verdade que a rotina do trabalho tornou-me mais duro embora nunca tenha conseguido fazer-me insensível. Não raro percebo alguma lágrima rolando pelo rosto. Rapidamente seco e sempre atribuo a algum cheiro mais forte.
Por vezes olho o Cristo que coloquei na parede e pergunto: – por quê? Estranho, mas sempre ouço alguma resposta.
Em cima da mesa fria o corpo de um homem, meia idade, quase igualmente gelado e rígido. As vestes maltrapilhas trajadas como uniforme do abandono; o rosto inchado por edema; barriga crescida por ascite; feridas em antebraços e pernas por pelagra, pelos púbicos com implantação feminina por alteração hormonal; musculatura frágil por falta de proteínas, cheiro fétido por esquecimento dos hábitos de higiene.
Olhei para o meu auxiliar e fiz o diagnóstico: – mais um bebum! Cirrose!
A necropsia transcorreu com a frieza e a técnica científica necessária. O diagnóstico foi mesmo de cirrose. Fígado destruído, baço aumentado, varizes no esôfago, edema no cérebro, inflamação no estomago repleto de liquido transparente com cheiro forte de álcool. Mas a tarde era sombria, havia frio e vento e meu espírito, minha alma e meus sentimentos, igualmente, pareciam combinar com o clima.
Olhei para o corpo do homem, suas roupas, sua condição e mais uma vez sequei uma lágrima que rolava pelo rosto. Talvez fosse do cheiro forte do formol que havia na sala.
Quando percebi que não havia formol na sala deparei-me com meu pensamento imaginando a história daquele homem, suas razões, seus sofrimentos.
Teria conhecido os pais? Tido irmãos? Teria estudado, trabalhado? Teria amado? Também teria sido amado? Teria constituído uma família com casa, mulher, filhos, cachorro, sogra? Afinal, qual seria seu desencanto?
As injustiças do mundo? Teria a vida sido a ele mais justa que a tantos outros?
Minha reflexão não trouxe qualquer resposta. Por mais que formulasse perguntas a mim mesmo, mais dúvidas encontrava.
Saí da sala de necropsias convencido que seria inútil buscar respostas. Era mais um bebum morto, mais uma cirrose diagnosticada. Nisso não havia novidade; diferentes estavam meu espírito, minha alma e meus sentimentos… Sombrios como a tarde.
Entrei no setor administrativo do Posto para preencher a Declaração de Óbito.
Num banco pobre de madeira estavam sentados a esposa, um filho e uma filha. Olhei para todos e a cada um deles. Penetrei profundamente em suas almas por seus olhos parados. Por instantes conversamos sem trocar uma palavra. Eu não estava ali para anunciar a morte que eles já sabiam, nem para dar um diagnostico que, igualmente, conheciam. Eu apenas estava ali, em nome da lei, para entregar-lhes um documento que possibilitaria o enterro do cadáver de um esposo e pai.
Olhei a mulher e conversamos. Soube que estavam separados fazia algum tempo. Depois de muitos anos de sofrimento, havia buscado viver sem marido. Ela não chorava de derramar lágrimas. Em seu semblante havia marcas de vivencias muito mais profundas que as deixadas por sua idade. Não havia ódio. Havia mágoa. Uma profunda mágoa, uma tristeza do tamanho do mundo. Seu depoimento, insistindo em testemunhar que quando ele não bebia era um homem bom, saía por voz serena, sem culpas ou lamentos. Dava a perceber que o amor que havia existido deixou algum tipo de sentimento bom. Não sei qual. Restava, talvez, alguma lembrança. Quem sabe do primeiro beijo, pensei eu.
Depois olhei o filho. Tinha os olhos de quem não havia chorado uma disposição de manter-se firma. Não consegui encontrar desprezo em sua expressão. Havia dor. Seu herói havia tombado. Não havia mais tempo de retomar qualquer conversa.
A filha não se importava de esconder o choro. Adolescente mais nova que o filho estampava em seu rostinho um misto de pena e saudade. Talvez, pensei eu, lembrasse de um dia do seu aniversario e a presença do pai sóbrio.
Com o olhar da mulher e dos filhos fixados em minha mente voltei para casa.
O dia parecia-me mais sombrio, a chuva e o vento mais fortes.
A mulher não recordou das agressões sofridas. O filho não contou vergonhas passadas. A filha desconsiderou as ausências havidas.
E eu, não havia realizado a necropsia em mais um bebum: havia encontrado o cadáver de um homem que amou, foi muito amado e, lamentavelmente, padeceu de uma doença chamada alcoolismo.
Dr. Flávio Ennes Cardone
Médico Legista/RS
Vivencia Nº111 – Janeiro/Fevereiro – 2008