Uma aula de espiritualidade
Foi como se eu tivesse realmente “pronto” – no quarto ano de A.A. – para ler o texto do filósofo norte-americano William James, considerado o “pai da moderna psicologia”. Li Variedades da Experiência Religiosa como quem estuda: com cuidadosa atenção e anotando passagens importantes num bloco de papel. Como não encontrei uma edição em português, recorri a um volume em espanhol, numa biblioteca pública, e isso por si só tornou minha leitura ainda mais atenta.
Foram muitas e gratíssimas as surpresas. A experiência foi notável, não só por confirmar para mim aspectos da espiritualidade que eu já havia percebido, por meio da prática do programa de A.A. – a exemplo da consideração do autor de que “Deus é real desde o momento em que produz efeitos reais”, mas também porque me abriu novas e valiosas perspectivas de crescimento espiritual, ao esclarecer sensações que já tinham me assaltado, mas que não conseguia identificar com clareza. Caso desta passagem:
“A prece ou a comunhão íntima com o espírito transcendental – seja ‘Deus’ ou ‘lei’ – constitui um processo onde o fim se cumpre realmente, e a energia espiritual emerge e produz resultados precisos, psicológicos ou materiais, no mundo fenomenológico.”.
Ao final da leitura sobrou para mim uma certeza: a de que o crescimento espiritual constante poderá me conduzir a um estado em que minhas preces deixem de ser meramente súplicas (como foram até agora e acredito que assim continuarão por tempo indeterminado) e assem a representar um estado mais elevado, em que eu possa louvar e amar a Deus como Ele merece ser louvado e amado – para que a semente de Sua presença dentro de meu próprio espírito possa se tornar plenamente efetivada.
Confesso que, de início, não achava que fosse ler o livro inteiro, mas apenas dois dos 20 capítulos, os que tratam da conversão (que eu entendo como despertar espiritual). Findos os dois capítulos (cada capítulo corresponde a cada uma das 20 conferências realizadas por James na Universidade de Edimburgo, na Inglaterra, entre 1901 e 1902), compreendi que tinha aberto uma arca de tesouro, passando a devorar tudo.
Há no livro um aspecto que, logo de saída, me fisgou: a generosidade do mestre, que não dá um passo sem relatar detalhadamente casos verídicos (alguns envolvendo alcoólicos), além de citar bastante outros autores e pesquisadores – como é o caso destas palavras , creditadas ao professor Leuba, contemporâneo seu e também precursor da psicologia da religião:
“Deus não é conhecido, não é compreendido, é simplesmente utilizado, às vezes como provedor material, às vezes como suporte moral, às vezes como amigo, às vezes como objeto de amor. Se demonstrar sua utilidade, a consciência espiritual não exige mais nada.
Existe Deus realmente?
O que é?, são perguntas irrelevantes.
Não é a Deus que encontramos na análise última dos fins da espiritualidade, mas sim a vida, maior quantidade de vida, uma vida mais ampla, mais rica, mais satisfatória. O amor à vida, em qualquer e em cada um de seus níveis de desenvolvimento, é o impulso religioso”.
Outra citação, creditada pelo autor a Frederic Myers: “Se perguntarmos a quem dirigir a prece, a resposta (curiosamente, é certo…) há de ser isso não tem demasiada importância; a prece não é uma coisa puramente subjetiva, significa um incremento real da intensidade de absorção de poder espiritual – ou graça -, mas não sabemos suficientemente o que ocorre no mundo espiritual, para saber como atua a prece, quem toma conhecimento dela, ou por que tipo de canal é outorgada a graça”.
James também afirma que “o ponto religioso fundamental é que na prece e energia espiritual – em outros momentos adormecida – torna-se ativa e realmente se efetua uma obra espiritual de algum gênero”. Ele constatou, em suas extensas pesquisas sobre homens e mulheres que conseguiram despertar seu íntimo espiritual , que “o novo ardor que acende o peito dessas pessoas consome, com seu fulgor,as inibições inferiores que antes as perseguiam e imuniza-as da porção vil de suas naturezas. A magnanimidade, antes impossível, agora parece fácil; os convencionalismos insignificantes e os vis incentivos, antes tirânicos, agora não mais as subjugam”.
Muito antes da fundação de A.A., James já utilizava palavras muito familiares a todos nós, membros da Irmandade: “O despertar espiritual pode advir por um crescimento gradual ou abruptamente (por crísis), mas em qualquer desses casos parece ter chegado ‘para ficar’…”. Citando Starbuck, outro contemporâneo seu, James comenta que o efeito do despertar espiritual consiste em proporcionar “uma mudança de atitudes com relação à vida, que é constante e permanente, ainda que os sentimentos flutuem…”.
Essa singela colocação, “ainda que os sentimentos flutuem”, produziu em mim um efeito balsâmico. É que durante um bom período de minha recuperação pessoal, vivia com medo de que minhas oscilações emocionais constituíssem um grande risco. É certo que preciso continuar muito atento a meus altos e baixos emocionais, mas o fato é que tal reflexão veio confirmar o que eu já vinha percebendo há algum tempo. Ou seja, que, como ser humano, estou sujeito a uma certa gangorra de sentimentos, que nem sempre, contudo, leva a uma recaída alcoólica.
Um pouco mais de esclarecimento, sobre os meus temores de recaída, chegou-me com essa reflexão: “Enquanto a nova influência emocional não alcançar um tom de eficácia determinante, as mudanças que produz são inconstantes e volúveis e o homem volta a recair em sua atividade original.
Mas quando uma emoção nova consegue uma certa intensidade, atravessa-se um ponto crítico, conseguindo-se uma revolução irreversível equivalente à produção de um novo estado natural”.
E é muito significativo que, 35 anos antes da fundação de A.A., William James, confrontando o “santo” (para o autor, santa é toda pessoa com faculdades espirituais fortes e desenvolvidas) e o “homem forte” (refere-se ao conceito de super-homem, de Nietzche), tenha escrito: “(…) No entanto, é possível conceber uma sociedade imaginária na qual não caiba a agressividade mas sim apenas a simpatia e a justiça – qualquer pequena
comunidade de verdadeiros amigos conduz a essa sociedade. Quando consideramos abstratamente esta sociedade, ela seria, em grande escala, o paraíso, já que cada coisa boa se produziria sem nenhum desgaste. O santo se adaptaria perfeitamente a essa sociedade.
Suas maneiras pacíficas seriam positivas para seus companheiros e não haveria ninguém que se aproveitasse de sua passividade. Portanto, o santo é, abstratamente, um tipo de homem superior ao ‘homem forte’, porque se adapta a essa sociedade mais elevada concebível, sem depender para nada o fato desta sociedade vir a se concretizar ou não jamais”. Impossível não fazer uma analogia com A.A.
Nessa altura de minha programação pessoal, estou amplamente convencido de que a vasta literatura de A.A. é mais do que suficiente para minha recuperação constante – só por hoje. Lendo o livro de William James , pude sentir uma enorme satisfação também pelo fato de estar bebendo das águas de um dos regatos dos quais Bill W. se serviu. E uma grande necessidade de compartilhar minha experiência com os leitores da revista. Vinte e quatro
horas a todos.
Juan, São Paulo/SP
Vivência – maio/junho 2000